O Movimento Ciência Cidadã – MCC (site) está lançando um manifesto apontando retrocessos na Lei de Biossegurança e os vinte anos da liberação dos alimentos transgênicos no Brasil. Veja a íntegra:
20 anos de Retrocessos com a Lei de Biossegurança e a Liberação dos Transgênicos no Brasil c385g
ados 20 anos da aprovação da lei que permitiu a adoção em massa de plantas transgênicas, quando a incorporação dos produtos dessas tecnologias é dominante — muitas vezes sem a correta rotulagem — na cadeia alimentar dos brasileiros, o Movimento Ciência Cidadã (MCC), do qual participam mais de duas dezenas de ex- membros da CTNBio, apresenta à sua consideração os argumentos contidos neste manifesto.
Nenhuma das promessas das multinacionais produtoras de sementes transgênicas, associadas a suas monoculturas quimico-dependentes, se cumpriu e, infelizmente, todos os alertas dos ambientalistas e agricultores ecológicos acabaram tornando-se realidade. 653xm
Vinte anos após a Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005), e 22 anos após a primeira liberação no meio ambiente de um transgênico (a soja RR, no sul do Brasil), o balanço deste processo no sistema agroalimentar é claro:
Não houve redução do uso de agrotóxicos, ao contrário. Também não houve melhoria na qualidade dos alimentos. Como agravante, a contaminação dos recursos genéticos tradicionais compromete a oferta e garantia de sementes não modificadas. Isto coloca em riscos a produção orgânica e agroecológica, assim como a segurança e a soberania alimentar e nutricional.
Correndo para o abismo v6a16
O ataque à biossegurança brasileira pelas empresas multinacionais de biotecnologia começou há cerca de 30 anos, com a aprovação da primeira Lei de Biossegurança (Lei nº 8.974, de 1995). Na época, pouco se conhecia sobre transgênicos, e a lei foi aprovada sem grande atenção pública. Algo semelhante ocorreu com a nova legislação sobre patentes e cultivares.
A aprovação desse marco legal no Brasil foi parte da estratégia das multinacionais para se inserir no país, garantindo a segurança jurídica aos seus negócios. Na ocasião, apenas o Brasil, entre os três grandes produtores mundiais de soja, não havia aderido à tecnologia.
Vale lembrar que, para começar a atuar no Brasil, há quase duas décadas a Monsanto celebrou um convênio com a Embrapa. Neste, a multinacional, garantia para si a propriedade intelectual da tecnologia, enquanto a Embrapa ficava com os registros dos cultivares transgênicos. O alegado avanço das pesquisas nacionais não ocorreu, já que 95% das sementes transgênicas utilizadas na alimentação estão nas mãos de algumas poucas empresas multinacionais.
No ano seguinte à aprovação da lei (em 1996), foi criada a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), prevista na Lei de Biossegurança e vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia. O fato da CTNBio estar ligada a esse ministério, e não ao Meio Ambiente ou à Saúde, revelou seu viés tecnicista. Os transgênicos eram tratados como tecnologia produtiva e não sob a ótica da biossegurança. A composição da CTNBio reforçava essa abordagem, na medida em que não exigia que seus membros fossem especialistas em biossegurança, ou a ser composta, em sua maioria, por geneticistas e biotecnólogos.
Suas reuniões eram fechadas, com presença dominante de representantes do setor interessado no desenvolvimento de organismos geneticamente modificados (OGMs). Nesta condição, muitos experimentos foram aprovados sem estudos adequados de impacto à saúde e ao meio ambiente, afrontando o princípio constitucional da precaução e priorizando os interesses das empresas, frente aos direitos da população.
A safra pirata 2n3v50
O debate alcançou notoriedade pública em 1997, quando a CTNBio autorizou a importação de soja e farelo transgênicos. No dia 14 de dezembro de 1997, o Greenpeace, resistindo àquela decisão, impediu o atracamento do navio Sanko Robust, de bandeira norte-americana, que trazia 34,5 mil toneladas de soja transgênica para o porto de São Francisco (SC).
Naquele mesmo ano, o Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC) e o Greenpeace moveram a primeira ação judicial contra os transgênicos, no Brasil. No mesmo período, em 2003, surgiram denúncias comprovadas quanto à presença de extensas áreas cultivadas ilegalmente, no Rio Grande do Sul, com sementes de soja transgênica contrabandeadas da Argentina.
Esses são alguns dos marcos iniciais relacionados à constituição da frente Por Um Brasil Livre de Transgênicos. A iniciativa articulou ecologistas, agroecologistas, agricultores familiares, consumidores, cientistas, ativistas e pesquisadores posicionados contrariamente à proliferação sem controle e sem limites de OGMs.
Brasil Livre de Transgênicos 273m5f
Quando se intensificava a oposição às multinacionais da biotecnologia e do agronegócio, no início do governo Lula, foi aprovada (em 2023) uma Medida Provisória que, contrariando a opinião pública e atendendo interesses da Monsanto, permitiu a colheita da soja transgênica plantada ilegalmente no Rio Grande do Sul.
Paralelamente, o governo Lula se comprometeu a revisar a Lei de Biossegurança, que, em seus pontos fortes, previa que Anvisa, Ibama e Ministério da Agricultura deveriam autorizar e proceder o registro dos transgênicos. Isso garantia isonomia de competência aos ministérios, de maneira que, mesmo após a CTNBio recomendar a aprovação de OGMs, eles poderiam ser barrados por aqueles órgãos reguladores.
Seguiu-se um período de intensas negociações entre ministérios e sociedade civil, levando a importante alteração normativa. Na nova Lei de Biossegurança (aprovada em 24 de março de 2005), as pressões favoráveis aos OGMs foram vitoriosas. A obrigatoriedade de estudos de impacto ambiental, que deveriam ser conduzidos pelo Ibama, bem como o poder de veto, por parte da Anvisa e do Ibama, foram retirados da lei.
O parecer da CTNBio ou a ser “vinculante” e, na prática, as recomendações da comissão adquiriram poder de lei. A hipótese de reunião do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), formada por ministros de pastas envolvidas com o tema, para avaliação da oportunidade e conveniência das liberações comerciais recomendadas pela CTNBio, não se cumpriu. Diante da ausência de atuação do CNBS, as recomendações “técnicas” da Comissão adquiriam status de imposição política.
Mudanças posteriores na lei flexibilizaram ainda mais a liberação de transgênicos, reduzindo exigências ambientais e validando análises pouco robustas, com amostragens inadequadas e insuficientes, entre outros pontos. Avançou, com isso, o plantio de OGMs em zonas de amortecimento de unidades de conservação e em áreas prioritárias para a biodiversidade. Foi alterado o quórum mínimo para as decisões da CTNBio, de maneira a assegurar uma maioria permanente de votos favoráveis aos interessados das empresas. O Histórico de aprovações para a totalidade dos pedidos, revela o domínio de convicções e a ausência de dúvidas, o que se contradiz ao método científico, situação que, infelizmente, dominava a maioria dos membros daquela comissão.
Futuro sombrio 6171a
Desde então, apesar da persistente crítica de parte de cientistas e de representantes dos movimentos sociais, bem como de representantes de alguns ministérios, a CTNBio tem liberado transgênicos sem os exames rigorosos necessários. Trata-se aqui de descaso a riscos biológicos e de biossegurança envolvendo a tecnologia e os impactos dos agrotóxicos associados. Ademais, enquanto a participação da sociedade civil é dificultada, as empresas gozam de direito a sigilo de informações que não correspondem apenas a segredos industriais relacionados à construção de OGMs.
Segundo dados da própria CTNBio, até meados de 2024, seis espécies vegetais alimentícias ou de uso industrial possuíam 132 eventos transgênicos, incluindo milho, algodão, soja, cana, feijão e trigo. A maior parte destas variedades transgênicas está relacionada à tolerância a herbicidas e/ou resistência a insetos.
No entanto, destaque-se: a promessa inicial de redução do uso de agrotóxicos não se concretizou. O consumo de ingredientes ativos de agrotóxicos aumentou de 170 mil toneladas, em 2003, para 800 mil toneladas, em 2022, ou seja, em 20 anos houve um crescimento de 371% do uso de venenos agrícolas no Brasil, segundo o Ibama (2024).
A flexibilização de normas por parte da CTNBio, a supressão de controles, a captura do discurso e os avanços da contaminação genética, associados à expansão no uso de agrotóxicos já define a quase completa eliminação da oferta de sementes não transgênicas de soja, milho, algodão, feijão e trigo. Note-se que as variedades de milhos crioulos, das quais dependem milhões de agricultores e que representam patrimônios culturais das comunidades tradicionais e da biodiversidade brasileira, estão em risco de desaparecer, principalmente em decorrência da contaminação por variedades transgênicas.
Mantida a atual composição da CTNBio, e sem reversão de normas inócuas à proteção das variedades não transgênicas, muito em breve não haverá mais sementes sem traços de modificações genéticas que conduzem à apropriação do desenvolvimento da humanidade, por poucos grupos transnacionais.
Os direitos humanos à um ambiente sadio, à alimentação adequada, e ao direito de escolha, tanto na produção como no consumo, resultarão sendo fraudados caso a Lei de Biossegurança não seja revista. As perdas talvez já sejam irremediáveis. O patrimônio nacional, representado pela agrobiodiversidade indispensável à soberania alimentar, possui princípios constitucionais que precisam ser defendidos no Brasil.
Movimento Ciência Cidadã (MCC)
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